sexta-feira, março 03, 2006


A solidão é um hospital fétido de cheiros de suores rasgados de gente que, estando cheia de gente, milhares de gente, está só. Tão só que o seu estômago é um buraco negro e o seu coração é cinza, cinza palpitante.
Essa gente que espera na sala de espera, desespera. Desespera por uma palavra, um toque, um: " Deixe lá, amanhã acordamos cheios de sol e de flores na boca! " .
Mas o senhor da recepção manda tirar uma senha, e todos esperam na sala de espera com a sua senha-da-cor-do-mal-respectivo, a merda de um fio de vida, que lhes empreste aos dentes podres-da-paciência-contida de vidas monótonas de musgo, uma pincelada de aguarela!
- Hormonas de alegria? Mandaram-me p'ráqui! É em ampolas ou fazem transfusão?
- Hormonas de alegria esgotaram há 100 anos atrás, minha senhora !
- Como?!?
- É verdade. Já não há dadores há muito tempo.
Olhe, a última transfusão que fizemos foi a um menino cinzento, que estava quase, quase a ficar adulto antes do tempo, todos tememos pela vida dele, um risco enorme, felizmente safou-se, coitadinho!...
- Ah! Coitadinho!... E eu? O que faço agora? A minha pele está roxa, não tarda está cinzenta e aí... Nem sei...
- Não posso fazer nada minha senhora, só se for ali á consulta de estupidez convulsa, pode ser que lhe receitem um pouco de "Sentido Crítico", dá sempre jeito, contudo, torna as pessoas um pouco amargas...Hum! Realmente...Não sei...
- Olhe, eu é que não saio daqui sem um a receita qualquer! Olha Q'uesta! Uma pessoa vem p'ráqui gastar tempo de vida de
Solidão-acompanhada, e sai daqui sem nada?! Nem um tónicozito capilar inteligente para cabelos loiros?!? Não! Isso é que era bom!
- Sente-se um bocadinho, vou ver o que posso fazer...
- Ali, ao lado daquele senhor da "Roda dos milhões"?
- Não. Isso é psiquiatria! Não me diga que a senhora anda aí metida com cantores como o Emanuel?!?!
- Não. Mas tenho pena destas pessoas...
- Sente-se ali naquelas cadeiras amarelinhas, como são alucinógeneas, sempre dá para fazer uma viagenzita! E têm uma vantagem: Não causam dependência! Eu volto já! Não se preocupe.
Ao entrar num mundo amarelo-de-tinta-de-pintar-paredes-de-casas-alentejanas
Sentia-se flutuar livremente na fluidez baça da tinta que lhe acariciava o corpo com a mansidão de uma tarde de Primavera. O coração batia agitado com o gotejar de orgasmos que lhe escorriam do corpo enrugado de nunca Ter sido amado de verdade, vertigens coloridas projectavam-na para o fundo do rio-amarelado...
- Ah! Está aqui!
- Hã?!?
- Acho que encontrei algo que a pode ajudar.
- Diga. Diga. Estou um bocado afogueada, desculpe!...(Esboçou um sorriso tímido).
- Não tem importância, mas como dizia: encontrei na enfermaria uns " Embriões-de-Gargalhadas" congeladas, acho que pertenciam a um programa televisivo do século passado o "Arreganha-a-Taxa", promovido na altura, pela Liga Portuguesa Contra os Rostos Sisudos, para angariar gargalhadas para as vítimas do parlamento. As pessoas que concorriam, iam para lá vomitar gargalhadas, que eram todas aproveitadas para a cura das vítimas parlamentares.
Olhe, algumas das melhores até foram usadas no tratamento daquele
gajo, o Mário Soares, é que antes do 25 de Abril, o gajo acumulava
muitas tensões faciais que lhe puxavam os músculos para baixo!
Depois, "Vzet" injectaram-lhe umas boas gargalhadas nas
bochechas... E até lhe deixaram algumas de cada lado criando em
cada uma das bochechas um reservatório de emergência, caso se
desse a revolução dos cravos, p'ra ele fazer crer aos outros que vivia
num mar de rosas. Foi daí até, que depois surgiu aquele slogan,
muito conhecido: "Soares é fixe!".
- Ah! Então deve ser bom...
- ...Bem ele já devia Ter injectado mais, mas agora...Já está muito flácido...Não há nada que se lhe possa injectar agora...Só se ele puser ali uns bocados de pão em cada lado, sempre estica um bocado a pele...
- ...Talvez se ele usar pão alentejano...Sempre é mais rijo...
- Boa ideia! Vou já telefonar para a SIC (Sabem Isto Come-pessoas), no programa do senhor Henrique Mendes ele vai encontra-lo de certeza! Eu tenho fé! Ouvi dizer que ele agora é bailarina aí num night club, o...ai, nunca me lembro do nome! A...”A Marmota-Cor-de- -Laranja” é isso! Dizem que é muito bom naquilo que faz!
- Coitadinho...A política...A sobrevivência...
E agora, como posso tomá-los?
- Tem moedas de 1 Euro? É que esta máquina já é muito velhinha...
- Hum! Deixe-me ver...Parece que sim...Estava a guarda-las para a minha neta pôr no porta-moedas, que lhe comprei na feira das velharias. É pedagógico, para as crianças saberem como era antigamente! Isto já não é o que era!
- Pois! É assim a vida!
Agora faça o seguinte: ponha os embriões no contentor azul do lado esquerdo da máquina, depois introduza as moedas e seleccione comprimidos ou supositórios...Terão de ser supositórios, os comprimidos estão encravados há já uma data de anos, olhe foi com uma receita de “Educação Sexual para a 3ª Idade”...Foi um surto, minha senhora...Como eu nunca vi!
Até que a máquina encravou, porque só os velhinhos sem dentes é que levavam em supositórios, sabe? E é assim, o ministério da saúde não nos dá outra tão cedo!
Isso deve dar aí uma três caixas de “Supositórios Gargalháticos”, põe um ao levantar e um ao deitar, que é para dormir mais animadinha!
- Obrigado pela sua atenção!
A máquina regurgita-lhe 3 caixinhas de supositórios vermelhos, só de terem uma cor tão viva já eram engraçados, mas p’ra quem já estava a passar do roxo para o cinzento, mesmo que viesse a ficar amarela, a sua pele, não teria as cores berrantes da juventude. E num encolher de ombros ressonado vem-se embora. Dá uma última olhadela na sala de espera, onde sozinha estava tanta gente á espera. E, cruzando o olhar com o empregado da recepção, este diz-lhe: - Adeuzinho, as melhoras! Tive muito prazer em tocar-lhe!
- Adeus, obrigado. Até á próxima! (Saiu pensativa...).
Será que ele tinha mãos de tinta amarela?!...
E com aqueles pensamentos vagos de dormência galáctica, passeava distraidamente ao longo da grande avenida par o fim do mundo, os seu passos lentos aderiam no chão molemente, como se fossem feitos de pastilha elástica de carne de amora silvestre.
Sentou-se na paragem dos autocarros, esperou, esperou...Passaram dois para a Menopausa, mas do seu, nem sinal!
Estava tão cansada! Cansada de esperar a vida inteira...Apanhou um taxi para casa.
Espalhou-se no sofá e fechou os olhos. – Que dia ! Pensou. As forças haviam- -se-lhe esvaído como a água da banheira assim que puxamos o “ralo”, o corpo relaxado confundia-se com o padrão do sofá estampado com sonhos frustrados numa fusão entre um abraço quente e um fosso enorme em que o único sentimento concreto é a solidão. Que bom! Que calmo! Que fundo!
Da televisão jorravam cascatas de cores gordas e sons grotescos, de risos pastosos de meninas despidas de corpo e vestidas com “maillots” de Néon. E os corpos caem como peixes, fora do aquário-Tv e ficam ali a morrer de tédio por baixo do televisor.
Tão perto e tão longe!...
Enquanto os Homens-peixe se debatiam pela vida no chão da sala, a mulher ergue-se numa convulsão de: “ Tenho as salsichas ao lume!” – O medicamento, o medicamento!...
O gosto mórbido pelo sofrimento...
- É tão bom termos pena de nós próprios, deixamos de nos sentir tão
sozinhos, até parece que estamos acompanhados! Bom, mas o
remédiozinho de certeza que me vai pôr melhor!
De repente, os seu olhos ficaram caídos putrefactos na data de validade.
- Expirra Amanhã! (Deficiência de carregar nos erres, coitada!).
Ali estavam eles, todos vermelhinhos e prontos para expirar no dia seguinte.
- Isso é que não! Agora vou tomá-los todos! Antes que expirre o prazo!
‘inda foram caros e não tiveram comparticipação!!
Sob a colcha florida (tipo camisa de cantora “pimba”), põe-se em posição de alvo. Introduz o primeiro “Obus” e...Alguns segundos...”Pum”! Aí vai ele, o “vermelhinho”! Dá umas quantas voltas ao pouco perfumado e frágil intestino daquela mulher.
Uma brisa...Solta-se um gás que deixando se ser “Lagrimogéneo”, surpresa!!!...
Saiu-lhe um gás “ Gargalhogéneo”!
- Hum! Isto tem piada! Vou experimentar outro! Ah! Ah! Ah! – Isto é giro! Vou pôr outro! Ah! Ah! Ah! Ah! – Outrooooo! Ah! Ah! Ah!
Completamente hilariante, embriagada de riso...Acaba com as 3 caixas...
Tudo está no mesmo sitio, a calma vem pé-ante-pé silenciosa e quente, a sala: Igual. Só mais corpos de Homens-peixe caíram do aquário-Tv, que continua freneticamente a vomitar imagens, palavras, Homens-peixe, “maillots” de Néon que as meninas já despiram, devido ao adiantado da hora...
Noticiário: - Boa noite, abrimos com uma notícia, no mínimo insólita! Uma mulher, com idade para Ter juízo e o IRS e a Segurança Social em dia, suicida--se com uma “overdose” de gargalhadas. Não se sabe a origem da droga ou como ela a obteve...
Foi encontrada feliz, no seu apartamento, com as pupilas completamente dilatadas como duas frigideiras de paelha, e com um enorme gozo impregnado em todo o corpo com marcas vermelhas em forma de corações. Gozo irritante, montes de gozo, quilos de gozo, puro gozo, gozo cintilante...Gozo! Gozo...Gozo...Gozo...Gozo...
A solidão é um hospital sem nome com pessoas sós, sós porque não têm boca, sós porque não têm gozo.
Sós, só isso!




FIM








14 de Maio de 1999




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